Homossexualidade e o papel social do indivíduo (persona).
Homossexualidade e Persona: com que roupa eu vou?
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou,
Pro samba que você me convidou? (Noel Rosa)

No decorrer de vários anos de atendimento clínico psicológico, não presenciei nenhum caso no qual a pessoa estivesse 100% tranquilo com a sua homoafetividade. Mesmo os sujeitos assumidos publicamente, sempre me relatam momentos de tristeza, medo e insegurança. A depressão e a ansiedade são doenças muito comuns em suas vidas. O receio de julgamento e do isolamento ou ainda, de qualquer outra sansão, é uma sombra que paira no ar quase que perenemente. Não é fácil estar totalmente seguro com esta condição, numa sociedade em constantes mudanças de paradigmas e tão cheia de vícios. O tradicional trafega paralelamente com a pós-modernidade a cada centímetro quadrado do chão.
Refletindo sobre os relatos dos meus pacientes, observo que a dor e o conflito transbordam no tom baixo da voz, na raiva contida, nas expressões das mãos crispadas, pelo olhar baixo e desviante ou pela lágrima que insiste em escapar pelo canto dos olhos e que é sutilmente enxugada.

Com muita atenção, escutei o sofrimento relatado no setting terapêutico, através de frases como: “se eu pudesse nascer de novo e ser diferente”, “tenho vergonha de ter nascido assim”, ou “há algo de muito errado em mim”, “sou uma aberração”, ou pior, “Jesus não me ama porque eu sou gay”. Neste último, com claras influências das religiões que negam a possibilidade da homossexualidade e incutem nos fiéis à culpa e a vergonha.
São nestes momentos que mais aparece a idealização do suicídio, porque não se pode desagradar e desapontar a Deus tão fortemente, segundo os credos de algumas religiões.
Porém, não é sobre o enfoque religioso que pretendo discorrer. Quero me dirigir àqueles que com receio de julgamento não assumiram, ou assumiram parcialmente a sua homoafetividade perante a sociedade, entenda-se também e principalmente, à sua família. Saiba que se tornar invisível não o livrará da dor da qual tanto procura fugir. Na maioria dos casos, salvo raríssimas exceções, a pessoa que é gay tem horror em sentir o preconceito na pele e foge dele como o “Diabo foge da Cruz”. Muito compreensível. Ninguém quer sofrer. No entanto, o que ela não se dá conta é que já está em sofrimento, aprisionado no seu silêncio.
Silêncio este, muitas vezes involuntário...
Nos relatos dos meus pacientes, invariavelmente há histórias de uma infância ou adolescência solitárias, entrelaçadas de sentimento de inadequação e estranheza, que nem sempre é possível nomeá-los. Sente-se, mas não consegue explicar o que é. E por não haver compreensão do que está acontecendo, aquele que sofre opta pelo isolamento, que pode se arrastar pela vida adulta afora. É um escudo contra o seu sofrimento, o desconhecido em si e da sociedade ameaçadora.
Portanto, é importante considerarmos outra ótica. É necessário que entendamos porque a opinião dos outros sobre nós é relevante e ponderemos se esta forma de pensar é a melhor.
Você sabe o que significa persona, segundo a terminologia junguiana?
Na formação do Ego (complexo central da consciência), paralelamente, também formamos a persona, que em latim significa “mascara de ator” (o papel social do indivíduo, derivado das expectativas da sociedade e do treinamento nos primeiros anos da vida), e a sombra (uma parte inconsciente da personalidade caracterizada por traços e atitudes, negativos ou positivos, que o Ego consciente tende a rejeitar ou ignorar). É uma tríade que nos acompanhará pelo resto de nossas vidas na busca do nosso processo de individuação.
Desde a infância nossos papéis sociais são determinados, em primeiro lugar, pelas expectativas parentais. A criança espera receber a aprovação dos mais velhos, através de pequenos gestos, dos olhares aprovadores e dos elogios efetivos. Segundo Whitmont, este é o primeiro padrão de formação do Ego e o denominamos de persona. Padrão este, constituído por julgamentos de valores, códigos e normas de comportamentos culturais, coletivos e parentais. Exigências dos pais e do mundo externo parecem idênticas para uma personalidade infantil e para adultos, cuja persona petrificou e apoderou-se do indivíduo.

Naturalmente, espera-se no decorrer do desenvolvimento psicológico adequado, que ocorra uma diferenciação entre o ego e a persona. Isso quer dizer que temos que nos tornar conscientes de nós mesmos, enquanto indivíduos, em separado das exigências externas construídas em relação a nós. Precisamos ser capazes de desenvolver um senso de responsabilidade e uma capacidade de julgamento não necessariamente idênticos aos padrões e expectativas externas e coletivas. Embora, é claro, que esses padrões devam receber atenção, pois afinal vivemos em sociedade.
Tive um paciente gay que no ambiente de trabalho referia-se ao namorado como Rafa. Como sabemos, o apelido de “Rafa” serve tanto para os homens quanto para as mulheres (Rafael ou Rafaela). A família também não sabia da sua sexualidade. Apenas um seleto grupo de amigos, alguns também homoafetivos, compartilhavam da realidade. Esta situação o colocava num constante estado de vigilância e prontidão para que não se traísse perante a equipe de trabalho e seus pais, que ele dizia, jamais aceitariam um filho gay. Ora, ninguém consegue sustentar esta situação por muito tempo sem sofrimento ou com um preço a pagar. Neste caso, foi um quadro de ansiedade agudo, com traços de depressão.
Esta distorção ocorre quando a individualidade é confundida ou subjulgada pelo papel social a ser representado. Quando a adaptação à realidade não é suficientemente individual, mas inteiramente coletiva, o resultado é danoso. A pessoa passa a ser apenas o papel (a persona) que representa, ou seja: o de doutor, de executivo, de mãe ou macho hetero que “passa o rodo na mulherada”.
Por outro lado, a persona equilibrada nos dá ferramentas sociais para lidar com diferentes situações pessoais e contextos diversificados. Nos auxilia à adaptação às exigências culturais e sociais, em conformidade com nosso papel em sociedade e ainda assim, nos permite sermos nós mesmos. Em outras palavras, usamos nossas vestimentas representacionais para proteção e aparência, mas também podemos nos trocar e vestir algo mais confortável quando for apropriado, e também ficarmos nus em outros momentos. A persona desequilibrada, ao contrário, nos paralisa e nos faz adoecer, porque gruda em nós ou parece substituir a nossa pele. Perdemos nossa identidade individual. A não diferenciação entre persona e ego, segundo Whitmont, leva ao surgimento de um “pseudo ego” sujeito à pressão dos estereotipados padrões morais coletivos.
Entrar em contato com aquilo que aprisiona e dar vozes ao seu Ser, até então inflectido é um forte aliado contra o preconceito. Aquele que você carrega consigo e nem percebe, mas que lhe impede de ser autentico com sua vida, seus interesses e seus sonhos. Um verdadeiro “remédio” contra o sofrimento e contra o seu preconceito, em primeiro lugar.

É muito cansativo e não é justo representar um papel social que lhe engesse onde quer que vá. É um esforço tremendo de vigilância e desassossego, que leva a pessoa ao isolamento, por se sentir cansado de encenar o tempo todo ou com receio de falhar e se denunciar em cada interação social que tiver. Automaticamente nestas ocasiões levanta-se o sistema de defesa egoica. E a pessoa se pergunta: Qual roupa devo vestir sem dar “pinta de”? Como devo me comportar? O que devo conversar? Parodiando Noel Rosa, afinal, com que roupa eu vou, pro samba que você me convidou? Eu lhe digo, vá com a sua roupa mais confortável, aquela que seja a mais agradável à sua pele. É nocivo e adoece o indivíduo que vive uma realidade que mais pareça uma camisa de força.
Há sempre duas personalidades competindo em nossa pessoa: aquele que somos e aquele que nos tornamos para nos adequarmos às circunstâncias familiares e sociais do nosso meio. Essa interação de opostos é muito ativa em nós e encontrar o equilíbrio entre eles é um árduo trabalho psicológico, que nos demande constante vigilância. No entanto, se você “caninamente” fiel aos princípios e moralidade coletivos e não segue nunca seus princípios éticos, os sentimentos.
pessoais e os valores próprios, você está sendo imoral consigo, com a sua vida, com seus propósitos e sonhos. É importante sempre se lembrar: você é um ser único, portanto, não deixe de viver jamais esta possibilidade.
Filmes recomendados:
- As Vantagens de Ser Invisível, 2012.
- Além da Fronteira, 2012.
- Contra Corrente, 2004.
- Bibliografia:
WHITMONT, Edward.C.. A Busca do Símbolo, 11ª Ed., São Paulo: Cultrix, 2002.
Marque uma consulta, terei o maior prazer em ouví-lo (a) e esclarecer as dúvidas pertinentes ao seu processo de cura terapeutica.
MSc. Estela Noronha
Psicóloga Clínica
CRP: 06/52562-9